Espiritismos

A liberdade de pensamento é um atributo de todo ser humano (1). Essa liberdade, aplicada ao Espiritismo, tem levado muitas pessoas à ideia de que existem vários “espiritismos” diferentes, pois cada um pode pensar a doutrina à sua maneira. Essa ideia leva à diversidade de circunstâncias e práticas que são chamada de “espiritismo” pelo Brasil à fora.

Nos parece evidente que esta ideia é incorreta. Os princípios que distiguem a Doutrina Espírita de outras correntes filosóficas e religiosas estão bem estabelecidos nas obras de Allan Kardec. Estes princípios foram estruturados e justificados por Kardec e vêm sendo discutidos por pensadores espíritas ao longo destes mais de 150 anos.

Por outro lado, a confusão é compreensível. É muito difícil, mesmo para os teóricos, separar uma doutrina de sua expressão como movimento humano coletivo. Assim, o movimento espírita (ou “movimentos espíritas”) se torna muitifacetado, diverso e, muitas vezes, contraditório. Cada simpatizante ou estudante do Espiritismo vai considerar que “movimento espírita” é aquele no qual ele próprio está participando.

Isto não deveria ser um problema em si mesmo. Todas as escolas filosóficas, científicas ou religiosas têm suas divergências internas, baseadas em compreensões distintas das ideias de seus fundadores. Esse é o movimento natural de evolução do conhecimento. Por que preocupar-se com isso, em relação ao Espiritismo? Seríamos acaso os fiéis depositários da Doutrina, encarregados de zelar pela sua “pureza doutrinária”? Se a diversidade é tão grande, quem estaria habilitado a isso?

Este equívoco (o de querer congelar uma ideia para manter sua pureza) já nos levou a grandes erros no passado. O caratér da revelação espírita é o progresso (2).  No caso do Espiritismo, esse progresso deveria se dar com estágios bem definidos: o surgimento de novas ideias e novas revelações (espirituais e científicas), o amplo debate sobre estas novas ideias através de um contraste com os princípios básicos, a análise da concordância dos Espíritos (desencarnados e encarnados), a verificação da praticidade destas ideias através da experimentações e observações, a incorporação gradativa destas ideias ao corpo doutrinário.

Naturalmente, para que isso não ficasse no campo da utopia, precisaríamos de um movimento espírita organizado de maneira muito diferente da que temos hoje. Basicamente precisaríamos encarar o Espiritismo como “mais uma” filosofia, “mais uma” ciência e “mais uma” religião e abdicar, definitivamente, do pretensioso caráter “salvacionista” que foi inserido no movimento. Ainda é imensa a quantidade de espíritas que pensam que o Espiritismo é “a” filosofia, “a” ciência e “a” religião.

Não apenas isso: pergunte-se a milhões de espíritas quais o princípios básicos da doutrina que diz professar e teremos uma pequena amostra da confusão em que estamos metidos. Muitos não sabem nem o que são “princípios”. Muitos têm uma “vaga ideia” do que seja reencarnação. Muitos não sabem explicar, nem de forma simples, as desigualdades que encontramos entre os encarnados. Muitos (a maioria?) nunca esteviveram numa reunião mediúnica. É preciso disso para ser “espírita”? A minha resposta antipática é: disso e de muito mais.

Mas ser espírita não é apenas estar buscando “a transformação moral para melhor”? Ora, esta é a proposta da 2ª. revelação, a mensagem de Jesus. O Espiritismo é a 3ª. Os diretores espirituais deste planeta não se movimentariam para reunir em uma única doutrina um corpo coerente de ideias já existentes (porque nenhum princípio espírita é realmente novidade) apenas para nosso deleite intelectual. Espiritismo é mais uma ferramenta para promover o progresso individual e coletivo. Amadurecida intelectualmente (dizem eles, não eu), a humanidade poderia entender melhor o que Jesus ensinou. O que fizemos? Voltamos a sacralizar Jesus – discretamente – e consideramos os princípios como acessórios (afinal, eles são muito difíceis de entender, não é? e o que importa é “sermos pessoas melhores”).

Para que sejamos uma pessoa “melhor”, Jesus já nos ofereceu várias opções ao longo dos séculos. Inúmeras religiões e filosofias propõem isso. Cada uma apresentou Jesus (“o caminho”) de uma forma diferente, adaptada à cultura, ao intelecto, ao sentimento individuais, para que ninguém pudesse alegar desconhecimento. O Espiritismo é mais uma opção, que permite a mentes sequiosas de explicações e conhecimento, uma oportunidade de entender a vida. Não é todo mundo que precisa, ou quer, ou vai, crescer através do Espiritismo. Respeitar o caminho escolhido pelos outros é fundamental.

Por isso mesmo, não se justifica abrir mão dos princípios básicos apenas para atender a um número maior de pessoas, ou ao entendimento deste ou daquele grupo. Não se trata de um processo elitista – embora seja interpretado assim por muitos. Há espíritas em todas as camadas sociais, de todo nível de formação educacional, de todo gênero sexual. O que acontece é que nem todo mundo que quer participar do movimento espírita, quer ser “espírita”. Então surgem ou contorcionistmos para explicar pontos doutrinários mais amargos, ou interpretações relativísticas de certas ideias que são absolutas, ou a adaptação descarada de pontos doutrinários para acomodar ideias “modernas”.

Neste ponto, espero esteja claro que estou falando de como “o movimento deveria ser” e não como “ele é hoje”. Precisamos de menos preconceito, menos ritualística, menos modismo, menos “estrelas”, menos guias encarnados, menos eventos para milhares, menos cristianismo (e mais Jesus). E mais adesão, estudo e difusão dos princípios doutrinários, de forma clara, acessível, prática, para quem realmente quiser se dizer espírita.

Denis diz que  “o Espiritismo será o que dele fizerem os homens” (3). Individualmente e coletivamente, estaremos sempre nos embates do mundo, com as questões sociais, políticas, culturais e morais de cada época. No entanto, a postura de cada um diante destes desafios não deveria ser confundida com a essência do Espiritismo.  O Espiritismo é, e esperamos sempre seja, um só.

  1. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 833
  2. A Gênese. Allan Kardec. Cap. 1
  3. No invisível. Leon Denis. Introdução.

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