“Breve” autocrítica na quarentena

Nestes dias de quarentena, a cada vez que olho no espelho vejo que meu cabelo cresceu mais um pouco. Não sei se ele sempre cresceu rápido assim, ou se é porque agora estou prestando atenção nisso. A mesma coisa tem ocorrido com os pensamentos a respeito da minha condição de espírita. Eles têm se avolumado. Na impossibilidade de cortá-los (seja o cabelo, sejam os pensamentos), vou compartilhando com você aqui – como já fiz aqui e aqui – na expectativa de que possa auxiliar na sua própria autocrítica.

Eu, espírita, acreditei durante muito tempo que o Espiritismo seria a solução para a Humanidade. Como todo mundo, eu me entusiasmei a partir da primeira leitura de O Livro dos Espíritos. As respostas para todas as perguntas (ou pelo menos, as mais importantes) estavam bem ali. Porém, com o passar dos anos, o entusiamo foi se tornando uma espécie de arrogância e presunção, uma crença de que o mundo inteiro se tornaria espírita. Seria a Nova Era da humanidade. Afinal, era o Consolador Prometido (1) ! No entanto, mais alguns anos mostraram que a mensagem não estava sendo compreendida nem dentro da casa espírita. Como esperar uma mudança em escala global?

Eu, espírita, sempre considerei que a assistência social, a ajuda materializada em forma de sopa, cestas básicas, roupas, casas, era uma atividade fundamental para a casa espírita. Afinal, isso não é caridade? Não é isso que os verdadeiros cristãos devem fazer? Somente há pouco tempo tenho reconsiderado esta perspectiva (por exemplo, tentando entender o que o Espírito Ivon quis dizer (2)). Sob um ângulo muito específico, esta prática causa uma divisão sutil e silenciosa entre os companheiros, entre os que podem “doar” mais e os que podem “doar” menos, com um valorização perigosa dos primeiros. Tenho certeza que precisamos repensar mais detidamente o que seria a caridade, sob a ótica espírita (3).

Eu, espírita, aprendi a ver na mediunidade uma tarefa especialíssima. Estudando detidamente as obras de André Luiz (4) e Philomeno de Miranda (5), entre muitos outros, entendi a mediunidade como um trabalho específico dentro da casa espírita. Coordenando cursos de “desenvolvimento da mediunidade”, expliquei isso inúmeras vezes. Hoje, ao perceber que o movimento espírita coloca obstáculos cada vez maiores aos exercício mediúnico, começo a questionar estas definições. Devo parte da minha forte convicção espírita a minha participação em reuniões de intercâmbio com os desencarnados, aplicando passes, conversando com os Espíritos, dirigindo médiuns. Por que isso deve estar restrito a alguns poucos? Porém, as considerações sobre  “mediunidade” são extensas e ficam para outra reflexão futura.

Eu, espírita, sempre fui um defensor da chamada “pureza doutrinária”. Associada à ideia do Espiritismo Salvador, sempre me pareceu natural que o Espiritismo não podia ser misturado com mais nada – em especial com as ideias de outras correntes espiritualistas. No entanto, confundi (e acredito que muitos o fazem) pureza doutrinária com preconceito. Acredito que hoje este problema está entranhado no movimento espírita, que se tornou – com muitas exceções – elitista, fechado em si mesmo, ideologicamente polarizado e relativamente “mundano”. Eu, pessoalmente, só percebi isso ao avançar em minha formação acadêmica e ao tomar contato com a diversidade de pensamentos. Mas, naturalmente, isto não está acessível a todas as pessoas. Como aprender a viver com a diversidade sem abrir mão dos princípios básicos?

Mas, espere! Felizmente nem tudo é tristeza nesta autocrítica. Tem coisa boa também – como toda autocrítica deve ter. Ufa! Vejamos.

Eu, espírita, sempre estive convicto da necessidade de estudo e divulgação da mensagem espírita. Tanto que há exatos 22 anos fundamos (com um grupo de amigas e amigos) o CVDEE (Centro Virtual de Divulgação e Estudo do Espiritismo), uma das primeiras iniciativas a usar a internet (que ainda estava nascendo no Brasil) para falar de Doutrina Espírita.  Com alegria e tristeza vejo que a ideia se popularizou. Com alegria porque a internet permite que você esteja lendo este texto, por exemplo, e acessando a informação espírita de qualquer lugar do mundo. Com tristeza, porque tem muita porcaria sendo chamada de Espiritismo.

Eu, espírita, há muito me preocupo com o viés igrejeiro do movimento espírita. Em geral – como sempre com muitas exceções – não estamos espelhando a mensagem de Jesus, mas sim os movimentos cristãos (e as religiões cristãs) que vieram depois dele. Neste sentido, aproveitamos a onda de estudo dos Evangelhos que se instalou no movimento a partir do início do século e em nosso grupo NEPE (Núcleo de Estudos e Pesquisas do Evangelho) tentamos ter uma visão mais crítica (e espírita) a respeito da mensagem do mestre. Além disso, com outros amigos, buscamos concretizar estas ideias em forma de livro, através do “Jesus segundo o Espiritismo” (6).

Eu, espírita, sempre achei estranho ter um departamento só para a “mocidade” (se até o termo é velho, imagina a ideia). Claro que os jovens podem e devem ter reuniões de estudo mais específicas, porém poderiam também participar de outros grupos de estudo, bem como das diversas outras atividades da casa. Deveriam estar na mediúnica, fazendo estudos, limpando o centro e ajudando na assistência social, como qualquer outro trabalhador do centro. É muito bom ver que isto está acontecendo cada vez mais, ainda que a passos lentos.

Chega né?

Cada item citado aqui merece uma conversa à parte. Vamos ver até quando vai a quarentena. Espero que um dia eu possa voltar a cortar o cabelo (mas sem cortar este sentimento de autocrítica…).

(*) Crédito da foto: Hadock on VisualHunt.com / CC BY-NC-SA

Referências

(1) O Evangelho segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Cap. 6, item 4.

(2) Diálogos Espíritas. Ivon (Espírito), Vinícius Lara (Médium), Daniel Salomão e Humberto Schubert Coelho (Organizadores). Editora SEP. 2019. Questão 145.

(3) O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 886.

(4) Série André Luiz. Resumo em: https://radioboanova.com.br/serie-andre-luiz/

(5) Livros de Manoel Philomeno de Miranda. https://www.livrarialeal.com.br/livros-por-espirito/manoel-philomeno-de-miranda.html

(6) Jesus segundo o Espiritismo. Daniel Salomão, Ely Matos, Fábio Fortes, Ricardo Baesso de Oliveira. Editora SEP. 2018.

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