O Espírita no Deserto

“E, tendo jejuado quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome”

(Mateus, 4:2)

Como símbolo ou experiência, a necessidade de enfrentar o deserto como parte do caminho espiritual está presente em várias tradições religiosas. Na tradição judaico-cristã, encontra-mo-lo na saída dos judeus do Egito, na parábola da tentação de Jesus, na vivência de João Batista, na viagem de Saulo pela estrada de Damasco. A alternância de calor e frio extremos entre o dia e a noite, a exarcebação das necessidades materiais, a ilusão provocada pelas miragens e o silêncio absoluto levam muitos indivíduos a questionarem (ou perderem) a própria sanidade mental. Ao mesmo tempo, é onde um número extraordinário de estrelas atestam a grandeza da criação.

Recentemente, o movimento espírita teve suas atividades cotidianas interrompidas em várias cidades. Atendendo às recomendações e orientações das autoridades no combate à pandemia do COVID-19, reuniões públicas, grupos de estudo e tarefas assistenciais foram suspensas em muitas casas espíritas. Enquanto muitos frequentadores e trabalhadores destas casas estão ainda exercendo suas atividades profissionais, um outro tanto está atendendo ao isolamento social e permanecendo em casa.

Muitos espíritas têm assim a chance de enfrentar – de maneira muito mais branda – o seu deserto. Obviamente, a metáfora do deserto é exagerada aqui, pois quem tem acesso à tecnologia do século 21 dificilmente estará completamente sozinho. No entanto, afastados das atividades sócio-doutrinárias externas por este período (que esperamos seja pequeno), somos compelidos à reflexão sobre o papel do Espiritismo em nossa vida e em nossa sociedade.

Não é preciso muito esforço para perceber o quanto é difícil para muitos este “estar consigo”. Colocados diante de si mesmos, muitos espíritas estão tendo suas convicções postas em prova. Por um lado, o medo da doença, da morte, da perda de entes amados minam a estrutura emocional de alguns. Por outro lado, outros se entregam ao misticismo religioso, com a crença em castigos divinos aplicados através dos “espíritos das trevas”, as preces por remédios e vacinas “espirituais” e a difusão de mensagens de “espíritos de luz” prolixos e dizendo obviedades. Tudo mostra o quanto ainda falta para a proposta espírita ser bem compreendida.

Outras questões são mais sutis. Suspensas as atividades assistenciais, como o espírita vai fazer a caridade? Muitos estavam acostumados (ou acomodados) à prática da chamada “caridade material” realizada no centro, através da distribuição de gêneros alimentícios, sopa, roupas, etc. Para muitos, essa era a única caridade praticada na semana. Como fazer agora? Principalmente neste momento, em que as carências dos mais carentes tendem a ser superlativas, justo agora, que é o momento mais necessário, estamos de mãos atadas?

Para o espírita que via na caridade material e no assistencialismo a razão de ser do movimento, este é um momento difícil. No entanto é sabido que, impedidos de praticar a caridade “pública”, podemos continuar praticando a caridade “particular”. Todos conhecemos uma ou duas famílias com as quais podemos colaborar (mas não sustentar), ainda que ninguém fique sabendo disso. Ou uma ou duas organizações assistenciais que estão precisando de recursos. Ninguém vai ver, mas esta é uma das vantagens do deserto – cada um está só com a própria consciência.

Também é a oportunidade do espírita exercitar a famosa caridade moral. Nas redes sociais, nas conversas familiares, nos comentários com os colegas de trabalho e, sobretudo, consigo mesmo. É preciso evitar o discurso vazio e óbvio de que “Deus vai prover”, “tudo vai passar” ou “é a transição planetária”, ou o discurso místico de que “basta a prece”, “é ação das Trevas”, “os Espíritos da Luz estão velando”, ou o discurso pseudo-doutrinário de “o mundo está em expiação”. Isto não consola ninguém e é o oposto do que estudamos no Espiritismo. É momento de falar de fé racional, de coragem para enfrentar as possíveis dores e perdas, da supremacia da realidade espiritual em relação à realidade material, das lições a serem aprendidas neste período, da importância do conhecimento científico para a nossa evolução, do papel do estado mental-emocional de cada um para manter a sanidade do planeta. Falar, mas principalmente ouvir com os próprio ouvidos.

Segundo a parábola, Jesus – representando o Espírito – só teve condições de superar a tentação da valorização da matéria, da supremacia do ego e do exercício de poder depois de quarenta dias e noites de jejum no deserto. Cabe a nós aproveitarmos bem estes poucos dias de jejum no nosso deserto pessoal.

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