Os limites do Espiritismo

Sugeri em outro texto (1) que os princípios básicos do Espiritismo levam à conclusão lógica de que não existem “espiritismos”. A partir de alguns comentários recebidos (2) e da própria necessidade de extensão das ideias, continuo aqui a explicar minha posição.

Há duas questões envolvidas e correlacionadas: (a) é necessário explicitar quais seriam estes princípios básicos, um tópico sobre o qual (é necessário estar alerta) não há consenso e (b) entender que a unidade doutrinária do Espiritismo impõe limites à doutrina, limites dos quais os espíritas deveriam estar cientes.

Com relação aos princípios básicos, o ponto de partida está em (3). É um ponto de partida – e não um texto definitivo –  pois Kardec o escreveu nas fases iniciais de seu trabalho, que durou cerca de 15 anos (se consideramos o período 1854-1869). Estas ideias foram sendo melhor compreendidas conforme as novas revelações iam surgindo, ao mesmo tempo que estabelecia (e estabelece) um certo parâmetro sobre o que pode ser considerado “doutrinário”.

Estes princípios podem ser apresentados de diversas formas. Eu, pessoalmente, prefiro a seguinte subdivisão:

Princípios básicos = princípios essenciais + princípios derivados

A ideia aqui é simples. Princípios essenciais  são axiomáticos. Princípios derivados partem dos essenciais para se justificarem. De maneira bem singela (sem nenhum rigor formal), podemos dizer que há 3 princípios essenciais: (I) a ideia de Causa e Efeito, (II) a existência de um princípio inteligente e de um princípio “não-inteligente” e (III) um aumento constante da complexidade inerente ao princípio inteligente (que poderia ser chamado de “progressão” ou “evolução”, embora estes não sejam os termos técnicos adequados).

Outros princípios básicos são derivados. Como exemplo, a ideia de Deus vem de (I); a ideia de “espírito” vem de (II); a interação entre espírito e energia (ou matéria, ou fluido) vem de (II) mais (III); a diversidade encontrada na natureza vem de (III); a ideia de que existe uma “finalidade” na existência vem da soma de (I), (II) e (III). E assim, com outras ideias básicas.

Como nada pode ser tão simples….há também princípios básicos que são derivados de outros princípios derivados. Assim, fenômenos como a questão moral (válida para Espíritos que alcançaram o estágio de humanidade), a reencarnação, a mediunidade, os diversos níveis de intercâmbio espiritual, os agrupamentos espirituais por sintonia de pensamentos e gostos, e vários outros, são consequências (escolhidas) de outros princípios derivados.

Mas é preciso mesmo essa coisa tão difícil para explicar os princípios básicos (afinal de contas, eles deveriam ser básicos, né) ? Na realidade a intenção deste modelo é apenas mostrar como é fácil “criar” um “princípio básico”, a partir da derivação de um princípio derivado. E, dada esta facilidade, como é dificil dizer quais são os “princípios básicos” do Espiritismo. Esta é mais uma fonte de confusão que leva muitas pessoas a acreditar que podem existir muitos “espiritismos”. Basta acrescentar mais um tanto de princípios derivados, e pronto, temos mais um “espiritismo”, que é diferente dos demais “espiritismos” anteriores.

A questão, como expus no texto anterior já citado, é que não temos no movimento espírita nenhuma autoridade para dizer onde esta derivação deve parar, ou quais derivações podem ser feitas. Isto leva a um conceito quase individual de “espiritismo”, ou que é compartilhado apenas por um pequeno grupo de pessoas.

Em verdade, isto faz parte da própria essência da Doutrina. Na Introdução de A Gênese (4) (e em vários pontos de suas obras), Kardec ressalta a condição de que a Doutrina Espírita é resultado do caráter coletivo e concordante dos Espíritos, e não de somente um Espírito. Isto distingue o Espiritismo de muitas outras teorias e filosofias, que podem ser atribuídas às ideias ou à iniciativa de um único homem, ou de um grupo pequeno de homens, formando uma escola de pensamento. Este o ponto forte da Doutrina. A dificuldade, para nós espíritas, é como colocar isso em prática.

Por outro lado, esta mesma ideia impõe limites ao Espiritismo. Se os princípios básicos são limitados (mesmo que haja um número muito grande deles), é óbvio que a Doutrina tem seus limites. Como já disse antes, isto assusta muitos espíritas, que julgam que “sua” doutrina está no topo do pódium das doutrinas, que julgam que a terceira revelação é a última e definitiva, que julgam que o Espiritismo vai conquistar o mundo, acabar com a fome, a guerra e a miséria, e que “um dia” os bilhões de Espíritos (encarnados e desencarnados) serão todos espíritas.

Compreender a limitação do Espiritismo significa entender o que ele é e para que serve, no nosso processo evolutivo individual e coletivo. O Espiritismo é essencialmente uma doutrina filosófica, ou seja, ele propõe uma maneira de entender a existência e a transcedência (usando aqui estes termos de maneira informal:  “existência” está associado ao que percebemos, sentimos, experimentamos com nossos sentidos físicos e espirituais, e “transcedência” ao que podemos conceber, imaginar, além do que os sentidos mostram). Ou seja, o Espiritismo propõe como “ver” o mundo e como “pensar” o que está além do mundo.

Como doutrina filosófica, naturalmente ela tem consequências que se aplicam aos vários campos de atuação humana. No entanto, e este é o ponto fundamental deste texto, o fato das ideias espíritas serem aplicadas a estes diversos campos de pensamento e ação, não faz com que estes campos se tornem “espíritas”. E nem faz com que estes campos tenham de ser agregados ao Espiritismo.

Assim, se o conhecimento espírita me ajuda a entender e vivenciar meu sentimento religioso, isso não significa que seja preciso uma “religião espírita”, ou que o Espiritismo seja uma “religião”. Apenas minha compreensão religiosa se ampliou.

Se o conhecimento espírita torna mais claro certas ideias apresentadas por esta ou aquela escola psicológica, seja Freudiana, Jungiana, Transpessoal, isso não significa que seja preciso uma “psicologia espírita”, ou que o Espiritismo seja uma “psicologia”. Apenas tenho mais elementos para compreender o funcionamento de certos mecanismos psicológicos.

Se o conhecimento espírita esclarece certos fenômenos físicos, químicos ou biológicos, isso não significa que seja preciso uma “ciência espírita”, ou que o Espiritismo seja uma “ciência” (5). Apenas tenho condições de pensar melhor, por exemplo, sobre a causa daqueles eventos.

Podemos repetir o mesmo raciocínio para a medicina, a sociologia, a história, a linguística, a pedagogia, etc. O Espiritismo não veio substituir nenhuma ciência ou religião. Sua visão filosófica permite, no entanto, enriquecer nosso entendimento destes vários aspectos do mundo.

Talvez a maior evidência dos limites do Espiritismo, seja a naturalidade com que os espíritas buscam outras fontes de conhecimento. Se o tema escapa dos princípios básicos (que, como disse antes, são limitados) é natural (e mesmo recomendado) que o espírita busque recursos exteriores. Se o assunto é mediunidade, reencarnação, perispírito, desigualdades, desencarnação, etc. a literatura e os estudos espíritas têm muito a oferecer. Mas quando se trata do processo de autoconhecimento, como melhorar os relacionamentos, como lidar com a culpa, como trabalhar a afetividade, como aprimorar os mecanismos cognitivos  e, em especial temas mais técnicos (como genética, sociologia, medicina, etc), os textos espíritas (doutrinários) apontam apenas ideias gerais.

Não deveria haver surpresa nisso. Se a pessoa enfrenta uma enfermidade, devem ser buscados recursos na medicina e não apenas no centro espírita. O mesmo deveria se aplicar para questões intelectuais, psicológicas e morais.

Esta visão não diminui o Espiritismo e, ao mesmo tempo, impede que a doutrina seja desfigurada. Ao mesmo tempo, desvincula a proposta filosófica do “modus operandi” de cada grupo de espíritas. A prática (o “movimento espírita”) estará sempre subordinada à compreensão que cada grupo tenha alcançado dos princípios básicos. Desta forma, evitamos ter que caracterizar a doutrina pela prática deste ou daquele grupo. Grupos diferentes terão práticas e ideias diferentes, mas não faz mais sentido falar em “espiritismo kardecista”, “espiritismo progressista”, “espiritismo francês”, “espiritismo brasileiro” ou “espiritismo religioso”.

Estou ciente da abstração destas ideias e do quão pouco, no fundo, elas fazem diferença no contexto que estamos vivendo. O mundo continua girando, mas é sempre um exercício salutar a reflexão sobre a doutrina que dizemos professar.

  1. Espiritismos. Disponível em:
    http://ematos.net/2020/05/16/espiritismos/
  2. Agradeço especialmente aos comentários do amigo Bruno Braune.
  3. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Introdução, item VI.
  4. A Gênese. Allan Kardec. Introdução.
  5. Naturalmente, é possível considerar o Espiritismo como uma “ciência” à parte (na qual o objeto de estudo seja o “espírito”), sem prejuízo para o argumento do texto.

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