Não sei se você sente o mesmo: se o distanciamento social terminasse hoje, e amanhã as atividades voltassem à rotina, eu me sentiria um tanto envergonhado – ser espírita não teria feito diferença nenhuma neste período.
Vou dizer de outra maneira: muitos de nós continuamos tão espíritas quanto antes. Reorganizamos parte de nossas atividades no mundo virtual, continuamos com nossas preces – e pedidos de prece, fazemos a caridade possível, lemos um pouco mais ou assistimos mais palestras no Youtube, e acompanhamos as notícias do mundo, pensando sobre elas o que sempre pensamos. Claro que estou falando dos que estão tendo esta oportunidade, pois muitos outros continuam na lide cotidiana.
De certa forma, isto é até bom, se considerarmos que muitos espíritas estão infectados pela segunda pandemia, que é a do medo.
A reflexão é: poderia ser diferente? Os estudos espíritas são insistentes em afirmar que nunca é a doença que promove a evolução do indivíduo, mas sim a sua postura diante da doença. Quem enfrenta a enfermidade com otimismo e esperança, ainda que venha a óbito, chega no plano espiritual em melhores condições. Já os pessimistas, revoltados ou desesperados agravam o próprio estado, estando encarnados ou desencarnados.
Já é um clichê dizer que a pandemia mostrou que a sociedade está doente. Se aplicarmos o mesmo pensamento que aplicamos a um individuo, o que observamos? Como a “sociedade” está reagindo à enfermidade? Sem surpresas, vemos que as reações são as mesmas que uma pessoa têm: os egoístas estão pensando somente em si mesmos e nas suas necessidades, os ignorantes estão tentando se enganar e enganar aos outros, os fanáticos estão esperando um milagre divino, os indiferentes estão só observando para ver o que vai acontecer, os revoltados estão brigando com Deus.
Existem também, embora raros, os que estão tentando extrair algo de positivo disso tudo. Tentam manter uma visão otimista (embora às vezes ingênua), aproveitam o tempo para reflexões pessoais, buscam melhorar as relações com os familiares na “prisão” domiciliar. Ou escrevem textos na internet 🙂
A expectativa geral, no entanto, é que tudo volte ao normal. Estamos ignorando deliberadamente que a recessão, a crise econômica, a perspectiva de pobreza mais generalizada, a falta de leitos e de infraestrutura hospitalar, o agravamento das desigualdades sociais são consequências não da pandemia em si, mas da situação “normal” em que estávamos vivendo. E para a qual desejamos voltar.
Que diferença faz, então, ser espírita neste momento?
Entre os vários cenários possíveis, é possível vislumbrar pelos menos quatro situações: (i) o isolamento social precisará ser mantido mais tempo; (ii) o vírus vai circular e muitas pessoas vão morrer; (iii) uma medicação eficaz será desenvolvida rapidamente e (iv) uma mutação gênica tornará o vírus mais brando. Sob o risco de sermos considerados alarmistas ou apocalípticos, analisemos:
- Os cenários (iii) e (iv) indicam um retorno relativamente breve à “normalidade”. No entanto sabemos que, como ocorre com alguns pacientes recuperados, é possível que a sociedade também tenha sequelas. A estrutura econômica já está de certa forma comprometida. Para além da questão puramente material, os casos de depressão, ansiedade, desespero, agressividade e suicídio tendem a crescer. Todos que lidam com a saúde mental – profissionalmente ou não – são chamados à campo, inclusive os espíritas. Como estamos nos preparando para isso? Estamos mantendo nossa própria sanidade? Estamos nos apoiando em uma esperança sóbria e sem fantasias? Que mensagem teremos a oferecer a esta multidão, esfaimada não só de pão mas de alento? Estamos nós mesmos vivendo a mensagem que pretendemos oferecer ao outro?
- O cenário (i), do isolamento prolongado, também não é feliz. O número de pessoas nas ruas, mostra a dificuldade em “estar em casa”. Filhos rebeldes, maridos violentos, esposas exigentes, idosos ranzinzas, todos se suportavam porque encontravam-se muito ligeiramente durante o dia. O que décadas de estudos sobre a estrutura espiritual da família pode ajudar neste momento? Como identificar o centro de equilíbrio do lar?
- Finalmente o cenário (ii), o mais temido, envolve um número elevado de desencarnações. Se é certo que, como Espíritos, devemos ter passado por situações semelhantes no passado, quando as guerras eram a regra, a maioria de nós não imaginava enfrentar esta possibilidade no início do século 21. Quando as primeiras notícias chegaram da China e da Europa, a maioria acreditou que não ia chegar no Brasil. Quando chegou, acreditaram que não ia chegar no seu estado. Quando chegou, pensou que não chegaria na sua cidade ou no seu bairro. E muita gente continua pensando que não vai chegar na sua casa. Dentre as conhecidas 5 fases do câncer ou do luto (negação, raiva, negociação, depressão, aceitação), a maioria ainda está na negação. Mesmo os espíritas. Queiramos ou não, é hora de falar de morte, de perda, de luto, de dor. Mas ao mesmo tempo, falar de imortalidade, de reencontro, de libertação, de crescimento. Estamos neste exercício? Ou, como vários religiosos superficiais, nossa mensagem é só de “vai passar”, “os Espíritos estão velando”, “esperança, meu irmão!” ? Claro que o otimismo é fundamental, mas ele deve estar fundamentado na certeza da vida espiritual e não na continuidade, pura e simples, da vida física. Qual tem sido nossa fala?
Que dureza, não? Quem imaginava que a renovação do ambiente planetário se daria através de mensagens lindas e floridas, de comboios espirituais levando os “maus” para bem longe e de hordas de Espíritos superiores assumindo posições de comando nos governos do mundo, deve estar bem espantado.
Não que a pandemia seja, per si, um mecanismo de transição. Na extensa análise que Kardec faz sobre os novos tempos (1), fica claro que esta transição não de dará por sinais exteriores (como, aliás, Jesus já havia advertido em Lucas, 17:20). Kardec vislumbra um processo essencialmente espiritual, gradativo, quase que imperceptível do ponto de vista material, e analisa o papel do Espiritismo neste processo. O Espiritismo não criará a renovação social, mas pode participar ativamente dela. Como? Naturalmente pela ação dos espíritas, em especial no campo das ideias, pois “é da luta de idéias que surgirão os graves acontecimentos anunciados”. Esse é o papel da “nova geração”, apresentada no mesmo capítulo. Mas nós, espíritas, queremos acreditar que essa “nova geração” de “espíritos superiores” ainda vai chegar. Esquecemos que o texto foi escrito há 150 anos, e que a nova geração somos nós mesmos. Nossa orgulhosa humildade (“afinal eu não sou um espírito superior”) não nos permite ver que o trabalho é de caráter coletivo, e que a nova geração é formada por espíritos de diversos níveis de evolução, mas tendo em comum o sentimento do bem.
Além de nossas preces e vibrações, precisamos de um trabalho intenso de divulgação da proposta espírita, sem o viés religioso sectarista, sem a recitação de fórmulas filosóficas complexas, sem um aspecto científico inacessível à maioria. Precisamos nos dirigir – como fazem as equipes socorristas nas regiões inferiores, segundo as descrições de André Luiz – àqueles que querem respostas, que querem ajuda, que querem amparo, que querem esclarecimentos. Precisamos parar de perder tempo com os egoístas, os fanáticos, os ignorantes por vontade própria, os que estão satisfeitos com a própria pobreza espiritual. É um movimento difícil, mas a hora é difícil.
Precisamos falar da saúde física, mas explicar que a morte é também um processo natural de libertação do Espírito. Precisamos aguardar a medicação ser desenvolvida, mas enquanto isso explicar que, para muitos Espíritos, a dor é o remédio. Precisamos consolar no luto, mas explicar que os amados continuam vivos, percebendo nosso desespero ou nossa resignação. Precisamos oferecer pão quando tivermos recurso, mas parar para escutar quem está com medo ou em confusão.
Precisamos parar com a ilusão de que o mundo após a pandemia será “um mundo melhor”, se tudo voltar ao normal. De novo, não é a doença que beneficia o doente, é a sua postura ante a doença. Estruturas carcomidas já caíram várias vezes na história das civilizações, e nós as reeguermos novamente, para as destruir de novo, com nosso orgulho e egoísmo.
Precisamos que o movimento espírita organizado, através de federativas e associações, se manifeste intensamente, em todos os meios possíveis. Mas não só eles; eu e você, também, dentro das nossas possibilidades – nas redes sociais, nos grupos de whatsapp, nas conversas familiares.
Recordemos o questionamento de Jesus no sermão do monte, comentado de forma brilhante por Emmanuel (2): “Que fazeis de especial?”. Se somos célula, obviamente não podemos almejar que sozinhos vamos resolver a situação do organismo todo. Mas, como nos lembra a benfeitora Joanna de Ângelis (3), podemos, sim, contribuir para a construção de um mundo (verdadeiramente) melhor.
Referências
- A Gênese – Allan Kardec – cap. 18 – https://kardecpedia.com/pt/roteiro-de-estudos/888/a-genese-os-milagres-e-as-predicoes-segundo-o-espiritismo/4302/as-predicoes/capitulo-xviii-sao-chegados-os-tempos/sinais-dos-tempos/7
- A Gênese – Allan Kardec – cap. 18 – https://kardecpedia.com/pt/roteiro-de-estudos/888/a-genese-os-milagres-e-as-predicoes-segundo-o-espiritismo/4295/as-predicoes/capitulo-xviii-sao-chegados-os-tempos/a-geracao-nova
- Vinha de Luz – Emmanuel/Chico Xavier – cap. 60 https://www.febnet.org.br/blog/geral/mensagens-espiritas/que-fazeis-de-especial/
- Vida Feliz – Joanna de Ângelis/Divaldo franco – mensagem 116 – http://www.reflexoesespiritas.org/mensagens-espiritas/3765-vida-feliz-cxvi
(*) A figura ilustra uma imagem microscópica eletrônica do primeiro caso americano do coronavírus Covid-19, com as partículas virais esféricas, coloridas em azul, contendo seções transversais do genoma viral, vistas como pontos pretos.
Fonte: https://www.scmp.com/news/china/society/article/3052764/new-cases-south-korea-exceed-those-china-coronavirus-sweeps