Ainda o mal

Para os filósofos e religiosos de todos os tempos, a ideia da existência do “mal” é uma questão difícil. Como conciliar a ideia de um Deus justo, soberano e bom, com a proliferação do mal que assistimos na Terra? Este pequeno texto é minha pitada de sal nesta discussão.

O mal não tem origem. Não tem origem porque ele não foi criado, não foi produzido, não foi construído, não foi organizado.

O mal é um “conceito” ao qual é associada uma “palavra”. Como conceito, ele só adquire sentido quando está dentro de um sistema de crenças e este sistema de crenças é compartilhado coletivamente. O sistema cristão – predominate no ocidente – tem um conceito para o mal, assim como qualquer outro sistema de caráter religioso ou filosófico. O conceito de mal está profundamente associado aos sistemas que acreditam que a “realidade” (o universo e tudo mais) é uma criação divina (ou seja, foi criado por algo não-humano) e que tem como característica fundamental a Ordem. A ideia de que a realidade é ordenada e regida por Leis está na base de  inúmeros sistemas de crença, inclusive o espírita.

Nestes sistemas, o mal é simplesmente o que é “contrário à Lei” [1]. Mas essa ideia é contraditória, pela pressuposição que de algo pode existir e ser “contrário à Lei”. Se a tal Lei rege tudo que existe, nada pode existir “fora da Lei”.

A saída conceitual mais simples para esse dilema é: não existe bem ou mal para a Lei. Bem/Mal são conceitos atribuídos na escala humana, na tentativa de conhecer e compreender a Lei. Bem/Mal são externos à Lei. Esta parece ser a saída dos Espíritos na codificação [2]:

“Embora necessário, o mal não deixa de ser o mal. Essa necessidade desaparece, entretanto, à medida que a alma se depura, passando de uma a outra existência. Então, mais culpado é o homem, quando o pratica, porque melhor o compreende.”

Como uma coisa pode ser necessária e ser mal, ao mesmo tempo ?! Isto acontece quando se julga os atos do passado com o sistema de crenças do presente. Se fica claro na resposta que, quanto mais o homem conhece a Lei, mais faz o bem, também está claro (para mim, obviamente) que o bem é dependente da compreensão da Lei e não da Lei em si mesma. Em outras palavras, a Lei (ou Deus) não tem nada com isso.

Não significa, absolutamente, que Bem/Mal  não “existam”. Eles existem enquanto interpretação da Lei. Podemos – dentro do sistema de crenças que assumimos e dentro da interpretação atual da Lei – dizer que uma coisa, pessoa ou situação é do “mal” ou do “bem”.

Mas esta ideia não implica em certa relativização do bem/mal? Sim, mas não no nível individual (porque o indíviduo sempre vai fazer parte de uma coletividade, e a coletividade vai assumir um sistema de crenças). Não significa que cada um pode decidir o que acha que é o “bem” e o “mal”, porque isto já está definido pela tradição da cultura/coletividade em que ele está vivendo. Numa analogia simples com o trânsito, não é possível, em sociedade, cada um decidir onde quer e vai estacionar. Existem placas indicando isso.

Isto também simplifica uma das recorrentes discussões sobre o tema: a relação entre o mal e a ignorância. O mal estaria associado tanto à ignorância da “Lei em si”, quanto à ignorância da “interpretação da Lei”, na cultura/sociedade/tradição/sistema em que o individuo está vivendo no momento. Por exemplo, muitos de nossos políticos corruptos ignoram a “Lei em si” (e portanto são ignorantes), mas não ignoram a “interpretação da Lei” na nossa sociedade (e por isso são maus).

Além disso, é mais fácil entender uma questão levantada nas obras espíritas: ao mesmo tempo que somos julgados por nós mesmos (segundo a consciência que temos da “interpretação da Lei”), somos julgados também por espíritos superiores (que, em tese, conhecem melhor a “Lei em si”).

Referências
[1] O Livro dos Espíritos, questão 630
[2] O Livro dos Espíritos, questão 638

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