No século 21, a hipótese que a Terra seja plana (e não um globo) é anticientífica, motivo de risos e piadas. Por que então um punhado de milhares de pessoas dizem acreditar nela? E o que nós, espíritas, podemos aprender com isso?
A Ciência falhou?
Incentivado pelo meu filho, e achando que ia perder meu tempo, fui assistir ao documentário “Terra Plana”, disponível na Netflix. O que pude concluir é que a Ciência (e neste texto me refiro às chamadas “ciências duras”) continua falhando em um ponto básico. Me explico: desde o renascimento do espírito científico no ocidente (pois ele já tinha florescido em séculos anteriores no oriente), os homens de ciência assumiram o papel de reveladores únicos da “verdade” ou da “realidade”. A rejeição de crendices e superstições, bem como de quaisquer dogmas de caráter religioso ou místico, possibilitou um avanço extraordinário no conhecimento sobre o mundo material em que vivemos. O problema é que a essência não-material do homem ficou de fora.
As questões relativas a essa essência não-material (que podemos chamar simplificadamente de “espírito”) tradicionalmente eram objeto de trabalho das religiões. Ao excluí-las das suas cogitações, a Ciência criou limitações para si mesma. Além disso, entender e explicar a Ciência demanda um esforço intelectual e cognitivo razoável, ou seja, é difícil. Todos que passaram pela escola sentiram isso. O que acontece é que as pessoas “não educadas cientificamente” continuaram se refugiando nas propostas religiosas, no senso comum (erroneamente chamado “bom senso”) ou nas próprias crenças pessoais.
Com os terraplanistas não é diferente. O que vi foram pessoas carentes, com dificuldades nos relacionamentos sociais, com um sentimento de não-pertencimento ao mundo “comum” e com forte sentimento de rejeição a uma ciência que não entendem (porque é complexa demais). Ou seja, pode ser qualquer um de nós. Esta descrição se aplica não a milhares de pessoas, mas a milhões. São estas pessoas que eram atendidas pelos movimentos religiosos, que formavam comunidades sociais nas quais se sentiam seguras, que compartilhavam uma crença comum, que conquistavam algum sentido para a vida através de uma relação com o transcendental ou divino ou sagrado.
Mas a Ciência vem espancando as religiões há pelo menos dois séculos. E as religiões tradicionais, com seus dogmas, propostas irracionais, práticas esvaziadas de sentido real, hipocrisia de seus líderes, fechamento em si mesmas, vêm colaborando no próprio declínio. O espírito humano, no entanto, ainda tem os mesmos anseios e tem buscado refúgio nestas ideias e movimentos esdrúxulos que estamos assistindo neste início de século. Neste sentido, a Ciência continua falhando.
Espiritismo Terra Plana
O que o Espiritismo tem com isso? Não é difícil fazer um paralelo e imaginar que os cientistas do século 19 consideraram que os primeiros espíritas eram tão transtornados quanto consideram que os terraplanistas o são atualmente (ok, eu sei que alguns cientistas ainda consideram os espíritas atuais como transtornados :-)). Mas a proposta espírita tem um ponto essencialmente diferente. Como diz Kardec, o Espiritismo
assimilará sempre todas as doutrinas progressivas, de qualquer ordem que sejam, desde que hajam assumido o estado de verdades práticas e abandonado o domínio da utopia, sem o que ele se suicidaria.
Allan Kardec, A Gênese, cap.1 it.55
Enquanto as religiões pretendem se posicionar “acima” da Ciência (e outros movimento querem “ir contra” a Ciência), o caráter do Espiritismo é estar “ao lado” dos estudos científicos, buscando compreendê-los a fim de que possam ser assimilados, se necessário. Enquanto ciência de observação, o objeto de estudo do Espíritismo é o “espírito”, objeto que foi (e ainda é) rejeitado pelos outros ramos da Ciência. No entanto, no que se refere ao mundo material, cabe ao espírita estudar as diversas ciências e acompanhar seu progresso.
Mas parece que muitos espíritas não compreendem isso. Três situações estranhas acontecem então:
a) A primeira situação é a dos espíritas que assumem que o Espiritismo está “acima” da Ciência, julgando que o conhecimento do mundo espiritual e das relações dos espíritos com os homens nos coloca em posição “superior” aos cientistas. Vemos aqui, sem véus, o orgulho em sua expressão mais patente. Para estes espíritas, somos nós que detemos o conhecimento da “verdade verdadeira”, da “realidade superior”, da “essência de tudo”. Se esquecem que o mundo espíritual faz parte da Natureza (tanto quanto o material) e que a nossa ignorância ainda é milhares de vezes maior que o conhecimento que já adquirimos.
Não é raro ouvirmos que “a Ciência ainda vai chegar lá”, insinuando que o progresso científico ainda vai “descobrir” o Espírito. E aí poderíamos abrir um sorriso e dizer satisfeitos: “eu já sabia!”. Não acredito que funcione assim. A Ciência, como está estabelecida hoje, não inclui a hipótese espiritual nas suas fórmulas. Sem mesmo admitir a hipótese, é praticamente impossível alguma “descoberta”. Quando o elemento espiritual for incluído nas cogitações e possibilidades, teremos um novo ramo na Ciência e não uma Ciência nova. O Espiritismo certamente dará suporte a este novo ramo de estudo, mas não estará limitado a ele (e nem ele estará limitado ao Espiritismo).
b) A segunda situação é a dos espíritas que pensam que o Espiritismo precisa de aval científico. Não contradizer a Ciência não significa que precisamos nos apropriar de teorias científicas e inseri-las no Espiritismo para que este tenha mais “aspecto científico” ou adquira “mais respeito”. Para mim, o caso mais marcante é o uso do adjetivo “quântico”. Tudo hoje é “quântico”. Alguns espíritas acham que não podem ficar para trás, e colocam “quântico” em todo lugar. Faça um favor a si mesmo e não use “quântico”, a não ser que você esteja falando sobre “físca quântica” ou “mecânica quântica”. E sobretudo, nunca use a expressão “salto quântico” associada a qualquer assunto espírita. Esta é a expressão máxima do “Espiritismo terra plana”, que faz os cientistas darem gargalhadas.
Precisamos ter cuidado também ao falar sobre as energias espirituais, frisando sempre que estamos fazendo analogias e não descrevendo realidades, pois não temos ainda uma Física Espírita. Ainda estamos engatinhando no entendimento de como o Espírito atua sobre a matéria (tanto no nível do objetos materiais na escala humana, quanto em níveis menores como as células, genes, etc). O que temos são hipóteses e deveríamos sempre frisar isso. Então, quando usamos conceitos que são propostos pela Ciência devemos lembrar que, para ela, não existe Espírito. Cuidado com a apropriação indébita.
c) A terceira situação, mais delicada, é a dos espíritas religiosos. Está claro que o Espiritismo lida com questões ditas transcedentais, como por exemplo, a existência de Deus. Consequentemente, lida com um tipo de crença que é geralmente chamada de “fé” – no sentido de que é uma crença que não teria aval científico (e nunca terá, pois Deus não é objeto de estudo da Ciência). A diferença da proposta espírita é que esta “fé” pode (e deve) ser questionada. Ela deve ser confrontada com seu oposto (e se não existir Deus? e se não existir reencarnação? e se os Espíritos existirem mas não se comunicarem?)
Mesmo entre os terraplanistas existem aqueles que simplesmente aceitam a ideia, rejeitando a priori qualquer argumentação contrária, e aqueles que estão tentando fazer experiências práticas para provar seu ponto de vista. No campo filosófico do Espiritismo, estas experiências poderiam ser realizadas no campo da dialética. Como acontece com as ciências, que progridem nos seus estudos e descobertas, aqui também há espaço para progresso, mudança de ideias e concepções, compreensões mais dilatadas. Mas apenas quando não se assume uma postura religiosa, no sentido de dogmática.
Ideal Espírita
Há uma situação ideal para os espíritas, então? Dificilmente conseguiríamos uma resposta absoluta para esta questão – pois o Espiritismo lida com uma multidão de perspectivas e a história individual de cada um de nós é única. Um dos grandes objetivos da Doutrina Espírita é ser instrumento para auxiliar nosso progresso intelecto-moral. Neste sentido precisamos do apoio das diversas ciências e filosofias, enquanto a conduta ética se pautaria na proposta de Jesus (e não necessariamente a proposta das religiões ditas cristãs). Juntar estes elementos numa fórmula que tenha sentido pessoal continua sendo nosso trabalho de sempre.