O uso de modelos para estudo, pesquisa e divulgação científica, pode servir de exemplo para os estudantes no movimento espírita. Modelos podem ser usados para melhorar explicações, gerar discussões, fazer predições e prover uma representação visual de conceitos abstratos
No estudo e no aprendizado das ciências, modelos são ferramentas muito úteis. Os modelos são abstrações que buscam representar uma realidade que é complexa ou que não é diretamente acessível aos sentidos. Modelos podem ser usados para melhorar explicações, gerar discussões, fazer predições e prover uma representação visual de conceitos abstratos (1).
Eu acredito que parte das divergências entre aqueles que estudam o Espiritismo há muito tempo (e parte da dificuldade encontrada por aqueles que iniciam os estudos espíritas) está na ausência de modelos. A Doutrina Espírita é conceitualmente complexa. Ela está repleta de conceitos muito abstratos, relacionados a vários campos do conhecimento humano. A falta de modelos compartilhados, que busquem reunir tais conceitos num conjunto harmônico, contribui para que cada estudante crie o seu “modelo mental” personalizado. Isto naturalmente dificulta a exposição e discussão de ideias conhecidas, além de complicar a análise da coerência de novas ideias com os princípios já estabelecidos.
É verdade que temos algumas exceções. Por exemplo, Hernani Guimarães propõe tanto uma Teoria Corpuscular do Espírito (2), quanto um Modelo Organizador Biológico (3). Jorge Andréa apresenta um modelo para o psiquismo (4). Hermínio Miranda esboça um modelo semelhante para estudar a memória (5). Mesmo a obra psicografada de André Luiz traz alguns modelos “escondidos” (talvez o mais conhecido seja o modelo para a estrutura da consciência, na metáfora da “casa mental” (6)). Mas são exceções e, portanto, raras e pouco conhecidas.
Conceitos
Talvez o exemplo mais patente de que modelos são úteis ao Espiritismo seja o uso das expressões “alma”, “espírito”, “Espírito” e “homem”, na codificação de Allan Kardec. Estes conceitos são extremamente abstratos. Claramente Kardec estava ciente disso e se esforçou muito, desde de as primeiras páginas de O Livro dos Espíritos (7), para tentar definir uma interpretação mais concreta.
Muitos espíritas acham que a questão está resolvida. Pessoalmente, eu não acho. Faça a experiência e peça a vários colegas de estudo espírita a definição destes termos. Você vai entender o que quero dizer. Não só a questão às vezes fica nublada ao longo da codificação (afinal é um trabalho de 15 anos, em que o conhecimento foi se ampliando com o tempo), como também, nas chamadas “obras subsidiárias”, os termos são usados sem maiores compromissos com a proposta de Kardec. Isto é um paradoxo, pois estes conceitos são essenciais para compreensão fundamentada da proposta espírita.
Vou apresentar algumas citações breves e, a seguir, uma ilustração do que seria um modelo “simplificado” para tentar entender estes conceitos (um estudo mais aprofundado pode ser encontrado na Enciclopédia Espírita Online (8)).
Na introdução de O Livro dos Espíritos, Kardec inicialmente distingue três concepções comumente associadas ao termo “alma”: (i) a alma como princípio da vida material orgânica, (ii) alma como princípio da inteligência e (ii) alma como um ser moral, distinto, independente da matéria e que conserva sua individualidade após a morte. Após esta exposição ele diz:
A fim de evitar todo equívoco, seria necessário restringir-se a acepção do termo alma a uma daquelas idéias. A escolha é indiferente (…). Julgamos mais lógico tomá-lo na sua acepção vulgar e por isso chamamos ALMA ao ser imaterial e individual que em nós reside e sobrevive ao corpo.(9)
Mesmo assim, ele parece achar a definição confusa ainda, pois vai propor logo adiante a adição de um adjetivo, para melhor caracterizar os conceitos: (i) alma vital: princípio da vida orgânica, ou seja, a força motora, a energia vital puramente física que anima os corpos; presente nas plantas, nos animais e nos seres humanos, (ii) alma intelectual: o princípio da inteligência instintiva, de maneira mecânica e inconsciente; presente nos animais e nos seres humanos e (iii) alma espírita: o da individualidade e da consciência moral, presente exclusivamente nos seres humanos.
Pessoalmente, continuo achando confuso até aqui. Felizmente para nós, Kardec, no mesmo texto, faz um breve resumo da Doutrina Espírita, onde define de maneira mais específica os conceitos de “Espírito” e “alma” (10):
“Os seres materiais constituem o mundo visível ou corpóreo, e os seres imateriais, o mundo invisível ou espírita, isto é, dos Espíritos.”
“A alma é um Espírito encarnado, sendo o corpo apenas o seu envoltório.”
Ainda em O Livro dos Espíritos, a questão fica ainda mais clara (11):
76. Que definição se pode dar dos Espíritos?
“Pode dizer-se que os Espíritos são os seres inteligentes da criação. Povoam o Universo, fora do mundo material.”
134. Que é a alma?
“Um Espírito encarnado.”
a) — Que era a alma antes de se unir ao corpo?
“Espírito.”
b) —As almas e os Espíritos são, portanto, idênticos, a mesma coisa?
“Sim, as almas não são senão os Espíritos. Antes de se unir ao corpo, a alma é um dos seres inteligentes que povoam o mundo invisível, os quais temporariamente revestem um invólucro carnal para se purificarem e esclarecerem.”
Nas questões seguintes, é desenvolvido o tema do “períspirito”, outro conceito fundamental do Espiritismo, mas que não vou abordar aqui.
Neste ponto, os termos já ganharam uma “vestimenta espírita”: a “alma vital” é o “princípio vital” e a “alma espírita” é simplesmente “alma”. A “alma intelectual” já havia sido definida anteriormente como “espírito” (com “e” minúsculo) ou “princípio inteligente” (12):
23. Que é o espírito?
“O princípio inteligente do Universo.”
Estamos em 1857 e tudo ia bem com nossos conceitos. Até que em 1859 surge O Que é o Espiritismo? onde lemos:
14. A união da alma, do perispírito e do corpo material constitui o homem; a alma e o perispírito separados do corpo constituem o ser chamado Espírito.
OBSERVAÇÃO — A alma é assim um ser simples; o Espírito um ser duplo e o homem um ser triplo. Seria mais exato reservar a palavra alma para designar o princípio inteligente, e o termo Espírito para o ser semimaterial formado desse princípio e do corpo fluídico; mas, como não se pode conceber o princípio inteligente isolado da matéria, nem o perispírito sem ser animado pelo princípio inteligente, as palavras alma e Espírito são, no uso, indiferentemente empregadas uma pela outra; é a figura que consiste em tomar a parte pelo todo, do mesmo modo por que se diz que uma cidade é povoada de tantas almas, uma vila composta de tantas famílias; filosoficamente, porém, é essencial fazer-se a diferença. (13)
Parece que a confusão retorna. Antes a alma era um “Espírito encarnado” (e, portanto, “homem”, ser humano; um ser triplo). Agora “alma” é um ser simples, tomando lugar do que era o “princípio inteligente”. Apesar desta anotação de Kardec, minha escolha pessoal (e do movimento espírita em geral) é ficar mesmo com as definições de O Livro dos Espíritos(*).
Modelos
De que forma estes conceitos poderiam ser representados por modelos? A maneira mais usada de expressar modelos é graficamente. Usemos figuras, então:
É importante notar que, nas figuras, estou usando “espírito” (com “e” minúsculo), ou seja, o princípio inteligente. Falo disso mais adiante.
Os modelos podem ser mais simples ou mais complexos. Naturalmente as figuras apresentadas anteriormente são exemplos de modelos muito simples. Mas, mesmo os modelos mais singelos permitem expressar várias ideias de maneira muito direta. Por exemplo, não sei se você notou, nas figuras acima, dois detalhes:
- é o espírito que envolve o perispírito e este envolve o corpo físico. Isso vai contra o senso comum (espírita) que interpreta literalmente o períspirito como “envoltório” do espírito. Entendo que o espírito, que não é material (e, portanto, de certa forma, adimensional), não pode ser envolto por um corpo energético tal como o períspirito. Na impossibilidade de desenhar algo imaterial, a figura apenas mostra que o espírito não está restrito.
- o fato de eu usar “espírito” (princípio inteligente), vai contra a ideia comum de que o “princípio inteligente” evolui para “Espírito”, ou seja, que em algum momento há uma transformação essencial de uma coisa em outra. O que está subentendido é que o “princípio inteligente” evolui sim, mas essa evolução representa um aumento inerente de complexidade (15). Ele não vira “Espírito”, pois este termo seria aplicado ao conjunto (espírito + períspirito).
Vale uma explicação sobre a segunda observação acima. A codificação de Kardec é basicamente antropocêntrica, ou seja, os temas são discutidos sob a perspectiva do ser humano. A ideia de “Espírito” pressupõe uma individualidade no estágio humano, já associado a uma estrutura material (energética). Por outro lado, a ideia de “espírito” pressupõe um “princípio” (**) independente da matéria e não individualizado. Por isso, a ideia comum é que “parte” do princípio inteligente – em algum momento – é destacado do todo e passa a ser uma individualidade. Embora nossa total ignorância a respeito deste processo de individualização, eu sou simpático à ideia. Mas não acho que o princípio inteligente “passe a ser” Espírito; ele continua princípio inteligente.
Os modelos não deixam explícito o conceito para “homem” (no sentido de ser humano). À primeira vista, “alma” e “homem” seriam a mesma coisa. No entanto, mais uma vez a força dos conceitos entra em jogo.
“Homem” é o conjunto todo. “Alma” é a parte não-material do conjunto. Esta distinção permite certas sutilezas que, às vezes, passam despercebidas nas respostas dos Espíritos. Por exemplo, em O Livro dos Espíritos (16):
416. Pode o homem, pela sua vontade, provocar as visitas espíritas? Pode, por exemplo, dizer, quando está para dormir: Quero esta noite encontrar-me em Espírito com Fulano, quero falar-lhe para dizer isto?
“O que se dá é o seguinte: Adormecendo o homem, seu Espírito desperta e, muitas vezes, nada disposto se mostra a fazer o que o homem resolvera, porque a vida deste pouco interessa ao seu Espírito, uma vez desprendido da matéria. Isto com relação a homens já bastante elevados espiritualmente.(…)
Como assim “seu Espírito”?! (***) O Espírito não sou eu mesmo? A resposta explicita não só relativa independência material do Espírito em relação a seu corpo físico, mas também a relativa independência psicológica da vida espiritual em relação à vida material cotidiana. Sim, eu sou o Espírito (eu não “tenho” um Espírito), mas no estado de vigília, na vida de relação como encarnado, sofrendo influências externas variadas (orgânicas, sociais, culturais, etc), tenho preocupações e desejos que podem se dissipar quando me emancipo do corpo físico.
Mas, atenção! A resposta ressalta que isso acontece com “homens já bastante elevados espiritualmente”, o que, convenhamos, deve ser uma minoria dos encarnados. Para a maioria de nós, as relações entre Espírito e corpo físico (ou seja, nossa condição de “alma”) ainda são muito intensas.
Usando os modelos
Mesmo sem aprofundar na exploração destes modelos, é possível ver que eles podem ajudar a compreender vários temas estudados pela Doutrina Espírita. Vejamos alguns poucos exemplos:
- A distintição entre fenômenos “anímicos” e fenômenos “mediúnicos”. Os fenômenos anímicos (de ânima – alma) independem da presença ou atuação de Espíritos e ganham um capítulo inteiro em O Livro dos Espíritos (17).
- A questão da “influência da matéria” é um tema recorrente na literatura espírita. Que a alma tenha sensações, impulsos, emoções, é compreensível, já que está associada um corpo biológico dotado de um sistema nervoso e um cérebro. Mas como um Espírito, que não tem corpo, pode sentir alguma coisa? Esta foi uma questão estudada por Kardec desde a primeira hora (18). O entendimento dos atributos e funções do perispírito, como elemento mediador, é fundamental.
- Há uma separação bem definida de questões materiais e questões morais? Esta é uma questão importante quando estudamos os vícios e as virtudes. O que é do Espírito, o que é do corpo? O modelo apresentado poderia servir de base inicial para modelos mais complexos que (apenas como exemplo) associassem questões intelecto-morais ao espírito, questões cognitivas (mente e sentimento) ao perispírito (em diferentes campos energéticos) e questões comportamentais à interação do Espírito como o seu corpo físico e com o ambiente externo onde está vivendo.
- Naturalmente questões como a reencarnação, a desencarnação, a morte, a hereditariedade, a sexualidade, etc, poderiam ser abordadas contando com um arcabouço mais coerente, em que os diversos aspectos relacionados a estes temas fossem interrelacionados. Um excelente exemplo é o estudo Que somos nós? (19)
- Os estudos no campo da Psicologia poderiam ser ampliados, para compreender o que há em comum e o que há de diferente (em termos psicológicos) entre a alma e o Espírito, quando consideramos o mesmo self (o espírito).
Enfim
A ideia, como nas ciências, não é ter apenas um modelo, ou apenas um conjunto de modelos, que sejam considerados “certos”. Não é para isso que servem modelos. Interpretações diferentes vão gerar modelos diferentes. Mas estou realmente convicto que a possibilidade de apresentar as ideias desta forma pode levar a um grau de entendimento (mesmo que sem concordância) muito mais alto do que aquele que possuimos hoje.
Notas
(*) Para uma outra perspectiva, vide a análise de Cosme Massi sobre o tema. (20)
(**) o termo “princípio” também tem várias interpretações e significados. No contexto espírita, eu uso a seguinte definição do dicionário: “O que é causa primeira, a base de algo; raiz.”
(***) No original francês também está “seu Espírito”: (…)L’homme s’endort, son Esprit se réveille, et ce que l’homme avait résolu, l’Esprit est souvent bien loin de le suivre (..)
Referências
- Why Models are Advantageous to Learning Science. Gail Chittleborough; David Treagust. Educacíon Química, v. 20, n. 1, p. 12-17, 2009. Disponível em http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0187-893X2009000100001&lng=es&nrm=iso
- Teoria Corpuscular do Espírito. Hermani Guimarães Andrade.
- Espírito, Perispírito e Alma. Hernanin Guimarães Andrade.
- Energética do Psiquismo. Jorge Andrea.
- A Memória e o Tempo. Hermínio Correia de Miranda.
- No Mundo Maior. André Luiz/Chico Xavier.Cap.3 – A casa mental
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita. Seção III.
- Enciclopédia Espírita Online. Verberte Alma. Disponível em http://www.luzespirita.org.br/index.php?lisPage=enciclopedia&item=Alma
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita. Seção III.
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita. Seção VI.
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questões 76 e 134.
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 23.
- O Que é o Espiritismo ?. Allan Kardec. Segunda Parte. Item 14.
- Videos: Períspirito, aura e chacras. IBIS. Disponível em http://www.ibbis.org.br/matrizes/videos-perispirito-auras-e-chakras/
- Espiritismo 101. Ely Matos. Disponível em http://ematos.net/2020/06/29/espiritismo-101/
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 416.
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Segunda Parte. Capítulo 8.
- O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questões 237 a 257.
- Que somos nós? Um estudo da interação Espírito, corpo e ambiente. Ricardo Baesso, Geraldo Marques, Carlos Alberto Mourão, Carlos Nogueres, David Gouvea, Eliane Banhato, Lyderson Viccini.
- A ordem didática de O Livro dos Espíritos. Cosme Massi. Capítulo VII.