Espiritismo 101

Conforme o século 21 avança, observamos um crescimento no volume de publicações sobre o Espiritismo, na facilidade de acesso a estas  informações, na possibilidade de qualquer pessoa expor publicamente suas opiniões e na diversidade de pontos de vista sobre qualquer tema. O espírita precisa conhecer melhor as bases da doutrina que estuda, a fim de desenvolver uma visão autônoma, crítica e fundamentada.


“101” é um código comumente usado em universidades dos EUA (1). Ele se refere a disciplinas que apresentam os princípios e conceitos básicos que devem ser conhecidos em um dado campo de estudos. Neste texto eu continuo a desenvolver uma ideia apresentada anteriormente (2), referente a uma visão pessoal sobre os princípios básicos do Espiritismo.

A questão é simples: para se discutir sobre a visão espírita de “qualquer coisa”, os estudantes espíritas precisam conhecer um mínimo sobre os fundamentos da doutrina. Naturalmente, não há um consenso sobre quais são estes fundamentos. Para este texto, eu usei como referência duas fontes pouco citadas: “O Espiritismo em sua mais simples expressão” (3) e “Síntese doutrinária e prática do Espiritismo” (4).

Para Allan Kardec, o Espiritismo é uma questão de crença pessoal (5), baseada na aceitação da existência dos Espíritos e nas manisfestações destes (6). Alguém pode ser espírita, mesmo que não admita ou concorde com todos os pontos da Doutrina (7). Naturalmente, mesmo para discordar, é necessário que este pontos sejam conhecidos.

Filosofia perene

O ponto de partida é localizar a Doutrina Espírita dentro do vasto campo de conhecimento humano. Ter uma visão mais realista da dimensão do Espiritismo nos ajuda tanto a relacioná-lo com os esforços milenares para compreender a vida e o mundo (as filosofias, as ciências, as religiões) quanto nos impede de assumir posições ufanistas ou expectativas exageradas a respeito da doutrina.

Uma possibilidade é enquadrar o Espiritismo como uma expressão da chamada “filosofia perene”, que propõe um modo espiritualista de pensar (8). Nesta perspectiva, o Espiritismo não apresenta nenhuma novidade (como reconhece Kardec em (9)), mas busca dar uma roupagem aos princípios da filosofia perene, que seja apropriada ao contexto intelectual, social, cultural do século 19 e seguintes. Não apenas isso, mas procura também verificar, experimentalmente, tais princípios.

De maneira significativa, reconhecemos, ao estudar as obras da codificação (e obras subsidiárias de valor), que as noções iniciais a respeito do Espiritismo giram em torno da condição humana. O termo “Espírito” (geralmente grafado com a letra ‘e’ maiúscula) diz respeito aos Espíritos que alcançaram o grau de humanidade. O conhecimento doutrinário inicial usa o ser humano atual  como referencial. Discussões sobre a morte, a reencarnação, as leis morais, o perispírito, a mediunidade, a vida futura, caridade, vícios e virtudes, e outras, são feitas considerando o estado presente da humanidade. De certa forma, o ser humano está no centro das ideias espíritas. Como exemplo, citamos Kardec:

O objetivo essencial do Espiritismo é o melhoramento dos homens. Não é preciso procurar nele senão o que pode ajudá-lo para o progresso moral e intelectual. (10)

O desenvolvimento da filosofia espírita, no entanto, mostrou que as ideias propostas pela Doutrina alcançam uma amplitude muito maior. É considerando esta visão ampliada que estruturo minha visão pessoal dos princípios básicos do Espiritismo.

Princípios básicos

Para efeitos didáticos, podemos considerar a organização dos princípios espíritas conforme a figura a seguir.

Nesta organização, temos um núcleo de princípios considerados essenciais (comumente chamado de “núcleo duro” de uma doutrina ou teoria). A partir destes, são derivados novos princípios (1ª. ordem). E a partir destes, repetidamente, novos princípios derivados (2ª. ordem, 3ª. ordem, etc). Quanto mais afastado do núcleo, mais um princípio perde a força, ou seja, mais está sujeito a interpretações particulares, questionamentos e discussões.

Princípios essenciais são axiomáticos. Um axioma é uma proposição que não é provada ou demonstrada, sendo considerada ou como óbvia ou como um consenso inicial necessário para a construção de uma teoria. É usando este segundo significado que considero três princípios como essenciais para o Espiritismo:

  1. A ideia de causa e efeito. Há muitos modelos de causalidade (11), mas a ideia simples aqui é apenas que um evento está sempre relacionado a um evento (ou eventos) anterior(es). Possuir uma causa não implica necessariamente em possuir uma finalidade. Para o Espiritismo a ideia de causa e efeito se aplica tanto a questões físicas, quanto filosóficas, quanto morais (*).
  2. A existência de um princípio inteligente e de um princípio “não-inteligente”. De novo, há várias interpretações para a ideia de “inteligência” (12). Mas estou adotando aqui a ideia simples que inteligência é a “capacidade de aprender”. Assim, existe um princípio ativo, que tem a capacidade de aprendizado, genericamente chamado de “espírito”, e um princípio passivo, que sofre a ação do primeiro, genericamente chamado “matéria”.
  3. Um processo gradativo, incessante, iterativo, interativo e incremental de aumento da complexidade inerente ao príncipio inteligente. Este processo poderia ser chamado em termos simples de “evolução” ou “progressão”. Ele é gradativo porque um novo nível de complexidade é construído a partir do nível anterior, sem saltos; é incessante porque não possui interruções ao longo do tempo; é iterativo porque em cada novo nível as experiências anteriores são recapituladas; é interativo porque ocorre em relacionamentos com o princípio “não-inteligente” e incremental porque um novo nível inclui todas as “conquistas” dos níveis anteriores.

Princípios derivados decorrem de inferências e aplicações dos princípios essenciais. Como não são axiomáticos, existe a possibilidade de derivar ideias que sejam até divergentes entre si, a partir do que é essencial. Desta forma, na formulação do Espiritismo, grande cuidado teve de ser tomado com esta questão. Agradeceremos sempre ao trabalho hercúleo de Allan Kardec em manter a coerência doutrinária. Mas este é um trabalho contínuo, e todos os estudantes são convidados a zelar por esta coerência – que não tem nada a ver com “pureza doutrinária”.

Os princípios derivados são muitos, como pode ser observado mesmo em obras de síntese, com as citadas anteriormente. E sobre estes princípios, como dissemos, não há acordo sobre quais são mais importantes (ou seja, não há um claro consenso a qual ordem pertence um dado princípio derivado). Podemos citar alguns exemplos, apenas para tentar deixar mais claro o procedimento de derivação:

  • A ideia espírita de Deus (13), vem da aplicação dos princípios [1] e [2]: se há causa e efeito, então um efeito inteligente tem uma causa inteligente; uma causa inteligente tem uma causa inteligente prévia; esta causa anterior tem de ter uma inteligência superior ao efeito; voltando recursivamente na corrente de causalidade, será necessário uma causa inicial (primária), que não tenha causa anterior e uma inteligência superior a todas as inteligências (suprema) – como sabemos, esta é a definição espírita de Deus.
  • A ideia da imortalidade da alma está baseada no princípio [2]: a inteligência é distinta da matéria, embora esteja em permanente interação com ela. Ou seja, o Espírito é independente da estrutura material que esteja usando. O corpo físico é uma estrutura material, sustentada energeticamente (lembrando que energia também é matéria). A falta desta sustentação causa a morte do corpo, mas não destrói o Espírito, que subsiste.
  • A ideia da reencarnação é derivada do princípio [3]: a evolução se dá pelo processo de aprendizado (que é a capacidade inerente ao princípio inteligente), e este aprendizado se dá através da interação com a matéria (e com o meio ambiente em que esteja situado) em vários níveis. A vida no plano físico (constituído por uma matéria mais densa) apresenta contextos de aprendizado diferentes da vida no plano espiritual (constituído por uma matéria menos densa). Esta diversidade parece ser essencial para a evolução do espírito.
  • A ideia da existência de um corpo espiritual (ou perispírito, ou psicossoma) deriva dos princípios [2] e [3]: o processo de interação com a matéria é mediado por um conjunto de “matérias intermediárias” (ou campos energéticos, numa nomenclatura mais atual). Ainda não entendemos completamente como um elemento imaterial pode agir sobre um elemento material, mas a hipótese mais aceita é que, entre esse o elemento imaterial (espírito) e o elemento material, existe um campo de energias cada vez mais sutis que sofrem a influência da ação espiritual.
  • A ideia da mediunidade está associada diretamente ao princípio [3]: a evolução espiritual se dá não apenas com a interação com a matéria, mas também com a interação com outros elementos espirituais. Dito de forma mais simples, os Espíritos interagem (“comunicam”) entre si, independente do estado “físico” em que estejam temporariamente estagiando.

A lista poderia continuar crescendo. Mas, se você chegou até aqui (parabéns!), podemos dar mais um passo.

Existem princípios derivados de outros princípios derivados. Isso é comum em qualquer campo de estudo. Ao se compreender e aceitar um certo conjunto de princípios, uma série de consequências surgem naturalmente, e estas consequências podem (ou não) serem tomadas como novos princípios. Vamos a alguns exemplos:

  • A ideia de que existe Deus gera a necessidade de saber qual a nossa relação com esse Deus. No Espiritismo, a relação é de criação. Os princípios inteligente e não-inteligente são criações de Deus (ou para utilizar a nomeclatura descrita aqui, Deus é a causa destes princípios).
  • A ideia da existência de um Deus gera a necessidade de tentarmos descrever as características ou atributos deste Deus. O estado atual da consciência humana também sente a necessidade de atribuir um sentimento de “ordem” e “finalidade” à criação. Projetamos estes sentimentos para Deus, e estabelecemos o que (no Espiritismo) é chamado de “leis divinas” e de “perfeição”.
  • As diferenças de condições encontradas na natureza humana (e na natureza em geral), reforçam o princípio essencial [3] e propõem que diversos níveis evolutivos diferentes coexistem, tanto no tempo quanto no espaço. Dito de forma mais simples, existe uma hierarquia espiritual, derivada do processo evolutivo. Quais as condições para “subir” nesta hierarquia? A resposta espírita é: desenvolvimento intelecto-moral. O desenvolvimento intelectual é o exercício da capacidade aprendizado (inerente ao espírito, como já vimos) e o desenvolvimento moral é o exercício da capacidade de interação com a criação, em especial com os outros espíritos. Estes dois fatores dão origem à boa parte da extensa bibliografia espírita, bem como à maneira como a Doutrina geralmente é descrita e apresentada.
  • Em especial, a questão da “moral”, apresentada no item anterior, é uma das mais complexas no Espiritismo. Apesar de comumente os textos espíritas afirmarem que “a moral espírita é a moral cristã”, esta simples frase carrega um potencial imenso que deve ser investigado. Por exemplo: o que é moral para o Espiritismo? O que é a moral cristã? Se o Espiritismo independe de religiões, porque a escolha da moral “cristã”? A lista de questões aqui é grande e merece ser considerada pelos estudantes espíritas.

Mais uma vez, muitos outros exemplos podem ser dados, mas acho que com os apresentados é possível entender a proposta.

Para que tudo isso?

Mas, afinal, para que gastar tempo com tudo isso? Bem, há uma resposta sincera, mas não tão séria: é um ótimo passatempo intelectual para quem gosta de “filosofar” sobre a vida, o universo e tudo mais. Mas há também um aspecto prático, em especial para aqueles que se dispõe a falar publicamente sobre Espiritismo: em que fundamentamos nossas respostas, quando nos apresentam alguma questão sobre Espiritismo? Muitos vão dizer, imediatamente: fundamento naquilo que estudei. Mas…

Mas quando se trata de “estudo” do Espiritismo (na verdade, de qualquer área), vários aspectos devem ser considerados. Vou ressaltar apenas dois:

  • Muita gente acha, ainda hoje, que estudar é “ler”. Quanto mais livros a pessoa “lê”, mais ela acha que sabe de Espiritismo. Obviamente, a leitura é fundamental. Mas o processo de aprendizado precisa de, pelo menos, mais dois passos: (i) é preciso “refletir” sobre o que foi lido, fazendo a ligação com o conhecimento que já se possui, criando questionamentos, criticando ideias novas, etc (ii) é preciso “aplicar” o que foi refletido, ou seja, é preciso transformar em ação o conhecimento teórico. Esta ação se dá na adaptação do comportamento, quando se trata de questões morais, e a apresentação do conhecimento a outros, quando se trata de questões intelectuais.
  • Como sei se o que estou lendo, ou se a palestra que estou ouvindo, é coerente com a Doutrina Espírita? A maioria dos espíritas adota um critério singelo: se ou autor é “espírita”, o conteúdo é “espírita”. Claramente, precisamos desenvolver uma visão mais autônoma, crítica e fundamentada. E para isso, como todo mundo sabe, é preciso conhecer melhor o Espiritismo.

Além disso, é importante lembrar que cada estudante espírita tem uma perspectiva diferente sobre o conhecimento doutrinário, como já discuti em um texto anterior (14).

Avalie-se

Eu termino esta conversa com uma proposta para você, que tem estudado Espiritismo. Como você responderia as seguintes questões, de caráter prático e cotidiano, fundamentando-se nos princípios básicos da Doutrina Espírita? Quais princípios você usaria? E porque usuaria estes princípios e não outros?

  • Por que o Espiritismo se posiciona radicalmente contrário ao aborto?
  • Meu amigo cometeu suicídio. O que vai acontecer com ele?
  • Qual a visão espírita a respeito do relacionamento homossexual?
  • Como considerar o racismo sob o ponto de vista espiritual?
  • Posso realizar reuniões mediúnicas em minha própria casa?
  • Por que Deus permite que o mal exista?

Os cursos “101” costumam ser simples. Por exemplo, hipoteticamente “Cozinha 101” ensinaria a cozinhar um ovo…Eu acho que “Espiritismo 101” deveria ser mais simples. Será possível?

Notas

(*) Adotando certo rigor, a expressão “causa e efeito” seria associada somente a fenômenos físicos. Nos textos espíritas é mais comum a expressão “causas e consequências”, mais próxima da ideia filosófica de causalidade (tks a Gabriel Garcia pela observação)

Referências

  1. 101 (topic). Wikipedia. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/101_(topic)
  2. Os limites do Espiritismo. Ely Matos. Disponível em http://ematos.net/2020/05/24/os-limites-do-espiritismo/
  3. O Espiritismo em sua mais simples expressão. Allan Kardec. Disponível em http://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/891/o-espiritismo-em-sua-mais-simples-expressao
  4. Síntese doutrinária e prática do Espiritismo. Leon Denis.
  5. O que é o Espiritismo. Allan Kardec. Cap.1, 2º diálogo, “Oposição da Ciência”. Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/885/o-que-e-o-espiritismo/1302/capitulo-i-pequena-conferencia-espirita/segundo-dialogo-o-cetico/oposicao-da-ciencia
  6. O Livro dos Médiuns. Allan Kardec. 2ª parte, cap. 32. Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/884/o-livro-dos-mediuns-ou-guia-dos-mediuns-e-dos-evocadores/983/segunda-parte-das-manifestacoes-espiritas/capitulo-xxxii-vocabulario-espirita
  7. Revista Espírita. Junho de 1868. Allan Kardec. Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/902/revista-espirita-jornal-de-estudos-psicologicos-1868/6268/junho/noticias-bibliograficas
  8. A Filosofia Perene. Humberto Schubert Coelho.
  9. O Espiritismo em sua mais simples expressão. Allan Kardec. Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/891/o-espiritismo-em-sua-mais-simples-expressao/1979/historico-do-espiritismo
  10.  O Espiritismo em sua mais simples expressão. Allan Kardec. Item 35. Disponível em https://kardecpedia.com/roteiro-de-estudos/891/o-espiritismo-em-sua-mais-simples-expressao/1981/maximas-extraidas-do-ensinamento-dos-espiritos
  11.  Causalidade. Wikipedia. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Causalidade
  12.  Inteligência. Wikipedia. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Intelig%C3%AAncia
  13.  O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 1.
  14.  O colorido pensamento espírita. Ely Matos. Disponível em http://ematos.net/2020/06/14/o-colorido-pensamento-espirita/

Crédito da foto: stux

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