Mais Jesus, menos cristianismo

Há hoje uma certa urgência em compreender e aplicar a proposta de Jesus – como, aliás, sempre houve.

É provável que Jesus e os Evangelhos sejam os temas mais estudados, comentados e discutidos no movimento espírita. Eu mesmo participei da oportunidade de escrever sobre as relações entre Jesus e o Espiritismo, em um trabalho colaborativo com outros amigos (1). Mas é um tema apaixonante, e aqui estamos novamente falando sobre o Mestre.

Podemos fazer uma generalização e dizer que o Espiritismo está filiado à tradição greco-juidaico-cristã. Como doutrina filosófica, a ligação com os gregos está explícita em (2), bem como em algumas assinaturas em (3). Lidando com o transcendental e, portanto, adquirindo um viés ou aspecto religioso, a ligação com o judaísmo e o cristianismo fica explicitada em (4), configurando as “três revelações”. Neste sentido específico, o Espiritismo é comparável a outras variadas ramificações deste mesmo tronco, como já discuti em (5).

No entanto, a discussão neste texto é a seguinte: até que ponto o Espiritismo é (ou deveria ser) “cristão”? O que chamamos de “cristianismo” atualmente está tão divorciado da proposta espírita em alguns pontos, que a dúvida faz sentido. Aliás, sob diferentes perspectivas esta mesma questão já foi discutida por Leon Denis (6) e Hermínio Miranda (7), apenas para citar dois estudiosos conhecidos.

A ideia geral é que as “revelações” são progressivas. Uma nova revelação ocorre quando a anterior foi assimilada ou desvirtuada. A “revelação mosaica” ocorre cerca de 1500 anos antes de Jesus. Jesus chega não para “destruir a Lei” (8), mas para esclarecer uma série de pontos que haviam sido esquecidos ou deturpados (“ouvis o que foi dito aos antigos, eu porém vos digo” (9)). Não demorou mais que 300 anos para que a própria mensagem de Jesus também começasse a sofrer desvios. Assim, coincidentemente, cerca de 1500 anos depois, o plano espiritual se manifesta novamente, através da revelação espírita.

O que deveria ser claro neste ponto? Que é necessário voltar à proposta “original” de Jesus, no que tange essencialmente ao seu aspecto moral. Os Espíritos, na codificação, apontam Jesus como “modelo e guia” (10). Guia, porque vai na frente mostrando o caminho. Modelo, porque suas atitudes devem ser “copiadas”, sempre que possível. O trabalho fundamental de mineiração das questões morais em meio à montanha de teologias e encíclicas foi feito por Kardec em (11). No entanto, cabe ressaltar que muitos textos da preciosa obra apresentam, como seria natural, um claro viés “cristão”, considerando a vivência dos Espíritos que escrevem as mensagens e as limitações da linguagem.

O ideal seria ter uma palavra que se referisse a este ensinamento básico de Jesus, expresso – parcialmente – nos Evangelhos. “Jesuíta” seria o termo ideal, mas como todos sabem, ele já é usado para outra coisa (12). Uma opção seria “Jesuísmo” e “Jesuista”, mas além de feios (na minha opinião, rs), não há consenso sobre o que seja isto (13). Então, vamos continuar falando apenas do “ensino de Jesus” ou da “mensagem de Jesus”.

Como muitos, também penso que Jesus “fez” mais do que “falou”. Assim, se é certo que suas palavras devam ser estudadas e analisadas, é preciso considerar que sua mensagem tinha um caráter transcendente. Por isso, ele recorria constantemente a parábolas, analogias e expressões de difícil entendimento, se considerarmos somente as interpretações literais. Estas palavras precisam de uma “chave” (ou seja, um conhecimento adicional) para serem melhor compreendidas. Diversos grupos possuiam esse conhecimento “extra” no passado, como os gnósticos (14). Atualmente, são os espíritas que estão em melhor condição para estudar tais textos.

Porém, se as palavras são difíceis, observemos as atitudes – que é o método de ensino preferido por Jesus. Naturalmente, não há espaço aqui para aprofundar a questão, mas quero chamar a atenção para, pelo menos, três comportamentos (ou orientações gerais) de Jesus, que podem começar a ser “modelados” por qualquer um de nós:

  1. A observação de fenômenos da natureza (vegetal, animal e humana) como comprovação da providência divina. A bondade de Deus (“pai nosso”) não substitui a ideia de um Deus de justiça (apresentado a Moisés), mas complementa esta noção. Ao chamar a atenção para a beleza dos lírios, o vôo das aves ou o cuidado da mulher com a dracma perdida, ele ilustra o cuidado de Deus para com suas criaturas. Um cuidado que cada um pode sentir em si mesmo, bastando entrar em contato com Deus, através da prece.
  2. A isonomia no tratamento com todas as pessoas, independente da condição moral, social, política, financeira, de gênero, de nacionalidade, de poder.
  3. A resignação em ser “humano”. Embora, provavelmente, tendo superado a condição de humanidade há muito tempo, ao encarnar na Terra Jesus assume a sua condição humana. Come, bebe, dorme. Se alegra com os discípulos. Chora a morte de Lázaro. Sangra, sofre e sente a dor no calvário. Não é santo, não é Deus. É homem. “Ser humano” superior, sim, mas em sua inteireza.

Claramente estes itens não resumem a proposta de Jesus. Mas servem como exemplo daquilo que estou tentando dizer. Diante destes comportamentos, as curas e os fenômenos físicos são secundários. As discussões sobre o que é “o reino de Deus”, sobre ele ter falado ou não em reencarnação, sobre se ele vai voltar ou não, são secundárias. Muitas vezes focamos nisso para fugir do essencial.

O que esse Jesus tem a ver com o “cristianismo oficial”? Muito pouco.

Por outro lado, podemos perguntar também: então para que o Espiritismo? Não basta Jesus? Ora, como todo espírita sabe, ou deveria saber, a proposta básica do Espiritismo é justamente nos lembrar isso que escrevi acima. Eu só pude escrever porque sou espírita. Não era o Jesus que eu conhecia antes do Espiritismo. Como diz Kardec:

(O espiritismo) nada ensina em contrário ao que ensinou o Cristo; mas, desenvolve, completa e explica, em termos claros e para toda gente, o que foi dito apenas sob forma alegórica.(15)

Assim, a bondade divina se torna uma consequência natural quando entendemos melhor “o que é Deus” (16). A isonomia com todas as pessoas se torna o comportamento recomendado quando entendemos todos os Espíritos como criaturas de Deus (e a Lei de Igualdade se torna óbvia). A compreensão de nossa humanidade é resultado simplesmente de compreendermos o processo evolutivo espiritual. São contribuições do Espiritismo para que entendamos melhor Jesus (e a nós mesmos) e reconheçamos a grandeza deste Mestre.

Por isso é preciso mais Jesus e menos cristianismo em nossas práticas espirituais, em nossos grupos de estudo, em nossos centros espíritas, em nosso ambiente familiar e profissional. Enfim, em nossa vida cotidiana.

Referências

1.Jesus segundo o Espiritismo. Daniel Salomão, Ely Matos, Fábio Fortes, Ricardo Baesso de Oliveira. Editora Primavera. Disponível em: https://editora.sepjf.org.br/produto/jesus-segundo-o-espiritismo/

2.O Evangelho Segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Introdução/Resumo da doutrina de Sócrates e Platão.

3. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Prolegômenos.

4.O Evangelho Segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Capítulo 1.

5. Espiritismos. Ely Matos. Disponível em: http://ematos.net/2020/05/16/espiritismos/

6. Cristianismo e Espiritismo. Leon Denis. Disponível em: https://www.candeia.com/cristianismo-e-espiritismo-leon-denis/p

7. Cristianismo, a mensagem esquecida. Hermínio Miranda. Disponível em: https://www.oclarim.com.br/produto/4152/cristianismo+a+mensagem+esquecida

8. Mateus 5:17

9. Mateus 5:20-21

10. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 625.

11.O Evangelho Segundo o Espiritismo. Allan Kardec.

12. Companhia de Jesus. https://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_de_Jesus

13.Jesuísmo. https://pt.wikipedia.org/wiki/Jesu%C3%ADsmo

14. O Evangelho gnóstico de Tomé. Hermínio Miranda. Disponível em: https://www.lachatre.com.br/loja/autores/g-h-i/herminio-miranda/o-evangelho-gnostico-de-tome.html

15. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Allan Kardec. Capítulo 1, item 7.

16. O Livro dos Espíritos. Allan Kardec. Questão 1.

* Photo by Jeremy Bishop on Unsplash

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